segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Amor à Camisola

© Getty Images

Sangue. Suor. Lágrimas. Alegria. Epítomes da paixão por um clube. A relva destroçando-se sob os pitões das botas, a camisola batendo contra o corpo como vento esbofeteando a bandeira, as gotas de suor deslizando sobre a pele, cada cicatriz uma montanha que o fruto do esforço tem de escalar. O coração batendo forte, as pernas fraquejando, a visão desbotada. Inspira, expira. A respiração não é fácil, mas cada estilhaço de fôlego é agarrado com unhas e dentes, como se de um qualquer amuleto da salvação se tratasse. Talvez o seja. Talvez o seja…



O ser humano move-se por amor. Amor ao outro, a si mesmo, a um objecto ou uma ideia. Amor a um passatempo, uma profissão. Amor a um clube. Sobre o campo, nos duelos mais intensos, nos embates mais decisivos, não só ganha quem pensa; também ganha quem sente. Aquele cujo coração bate mais forte e doloroso no peito, que batalha por cada bola como se fosse a única, quem carrega a camisola no corpo como estandarte ou bandeira de uma nação.

Mas deixemo-nos de falsa poesia. Durante o embate FC Porto-Benfica, num Dragão recheado de adeptos em chama, ficou em má imagem uma equipa vestida de Atlântico azul e celestial branco, que nunca pareceu saber o que aquelas cores significam. Do outro lado do campo, em sangue rubro e inflamado, um capitão de alma encarnada, olhos e leme de uma águia com efectiva noção de tudo o que ali havia em jogo. Flanqueado por um veterano com anos de benfiquismo e um jovem da cantera lisboeta, o grande Luís guiava as suas tropas com paixão. Amor à camisola.

Regressemos ao azuis-e-brancos. Dragão sem chama. Num plantel recheado de estrangeiros de qualidade, poucos sabem o que significa a expressão tornada mítica por Nuno Espírito Santo: “somos Porto.” Aqueles que sabem não jogaram, ora por lesão (Rúben Neves) ora por opção do treinador (Quaresma); mesmo Maicon, o único outro com noção do que é um Porto-Benfica, de tudo o que há por trás do embate, foi preterido por outro espanhol.

O problema, desenganem-se, não é a falta de portugueses ou o excesso de estrangeiros. Luisão e Maxi são de terras outras e sabem o que é ser Benfica. A quimera deste Porto começa no seu próprio treinador, não pela falta de qualidade do mesmo, mas por ele próprio não compreender tudo o que envolve este duelo. Não são só três pontos; é o orgulho de vencer o maior rival, de se poder gabar de ser o más grande de Portugal. E por não perceber isso, foi também incapaz de compreender que aqui não importa apenas a qualidade dos intervenientes, mas também as suas emoções. Porque aqueles que sentem o duelo tornam-se bestas, gigantes, caçadores de águias ou dragões sem qualquer piedade.

Quaresma pode até não ser melhor que Tello ou Brahimi, mas tem uma característica que nestes embates vale mais que a qualidade futebolística: é portista. Sabe o que é ser dragão. Maicon, por muitos erros que cometa e assobiadelas que receba, também o sabe. O que o Benfica tinha no onze titular em dose tripla o Porto apresentou em dose nenhuma. E viu-se, quando o Mustang entrou, aquela dose de algo, um je ne sais quoi que careceu nos outros por uma simples razão: não sentem a camisola.

O que neste FC Porto abunda em qualidade falta em amor ao clube. O Benfica tem-no, além de um grande treinador que soube como prender as peças do xadrez azul-e-branco. Claro que, sejamos realistas, a emoção não é o mais fulcral dos factores; no entanto, desempenha papel determinante num clássico desta dimensão. Apesar de todos os miúdos brilhantes nos quadros, faltou ontem ao Porto maior noção da dimensão deste jogo. Um portista. Alguém que quer mais, que quer melhor; alguém que coma a relva só para poder gabar-se, nem que por apenas seis meses, de que venceu o grande rival. O Benfica tinha nas suas fileiras tais guerreiros. O Porto não, castrado por lesões e opções do seu treinador, isto porque ele mesmo não compreende o que é conhecimento geral em Portugal: que qualquer portista comeria relva, terra e raízes, se fosse preciso os próprios adversários, só para poder vencer o Benfica.


Neste momento, dos três grandes, o Porto é o que mais perdeu a identidade. Irónico, visto que tantas vezes se superiorizou aos rivais por ser o que mais a tinha. Isso vê-se nos duelos entre grandes, pois enquanto o Sporting e o Benfica tem elementos (elevados a capitães) que fazem das tripas coração para bater os rivais, os portistas têm apenas grandes jogadores. Não chega.

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